domingo, 13 de janeiro de 2008

LIÇÃO 6

Por vezes a matemática oferece toques de mistério, algo que nos envolve e nos deixa sem explicação. Vejamos um desses momentos de encantamento. Em 1202, Leonardo di Pisa ou Fibonacci, (“filho de Bonaccis”), (1170-c.1250), mercador e matemático italiano, publicou um livro, o Liber abaci, (“Livro do ábaco”), onde apresentou uma seqüência de números que depois ficou famosa 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, ... .Cada número da seqüência, a partir do terceiro, é obtido somando os dois números anteriores. Fibonacci apresentou a seqüência com um exemplo apenas curioso, o da reprodução de um casal de coelhos. Somente em 1753 é que Robert Simson da Universidade de Glasgow, mostrou que dividindo cada número da seqüência pelo seu antecessor, resultava uma série que convergia para um número infinito 1,61803 ... Este número irracional foi depois denominado número áureo, seção áurea, ou corte de ouro, pelas suas propriedades “mágicas”, algo indefinido na sua proporção que mexe com a nossa sensibilidade artística. Se dividirmos o lado maior de um retângulo, de tal modo que os dois segmentos resultantes tenham uma relação de 1,61803 ... , estamos realizando o corte de ouro e essa divisão dá-nos uma sensação especial, de beleza. O ponto de corte divide o lado em dois segmentos, de tal modo, que a parte maior é a média proporcional entre o lado e a parte menor, quer dizer, se o lado for igual a 1, temos que 1/ x = x / 1 – x , ou seja, x é a raiz de uma equação do 2° grau. Essa raiz é portanto a expressão algébrica do número áureo e baseia-se no número irracional 5 , tendo uma representação simples em fração contínua :

Esta fração contínua tem a mesma característica já mostrada para a 2, em que as frações obtidas pelas parcializações sucessivas, apresentam valores alternadamente maiores e menores que o número áureo. Quer dizer, a fração contínua é a combinação de duas seqüências, que convergem para o mesmo número irracional infinito, o número áureo. Assim, pode-se também dizer que se trata de um par de classes, uma minorante e a outra majorante, em que o número áureo é, respectivamente, o limite inferior da primeira e o limite superior da segunda.

Marcelo Gleiser, físico brasileiro, a quem admiro pelo empenho em divulgar o conhecimento científico, escreveu certa vez, no caderno “Mais” da Folha de S. Paulo, um breve comentário intitulado A Matemática da beleza, onde aborda a seção áurea. Conchas de caracóis, galáxias. furacões, chifres de bode e a curva do lábio superior do nosso rosto são citados como exemplos, sem esquecer, é claro, o quadro mais famoso do mundo, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, onde o artista aproveitou ao máximo as vantagens da proporção divina.

Vamos aproveitar este tema para abordar mais algumas propriedades dos números reais. Consideremos um eixo numérico e nele o ponto limite de uma convergência. Como esse ponto limite aparece no eixo numérico ? Ele é representado, na seqüência de pontos, como um ponto de acumulação, isto é, um ponto tal que qualquer intervalo, por menor que seja, contém, na sua vizinhança, um número infinito de termos da seqüência. Um ponto limite é sempre um ponto de acumulação, mas o inverso não é verdadeiro.

A definição de limite das séries infinitas, leva-nos a defrontar novamente os conceitos fundamentais do conhecimento matemático. De fato, dizer que um intervalo contém um número infinito de pontos, é cair em contradição, visto que o infinito não é nenhum número, não significando uma quantidade a ser medida. O infinito por maior que seja o número de termos da seqüência, não pode ser alcançado, pois a distância de qualquer termo ao infinito mantém-se inálterada. Poder-se-ia recorrer a Aristóteles que afirmou, há mais de 2.300 anos, que os matemáticos precisavam que o infinito existisse, não para utilizá-lo, mas como infinito potencial. Mesmo assim, não podemos garantir que a contradição estaria eliminada, tanto mais que o limite seria um valor a ser atingido com a soma dos termos da seqüência infinita. Esta questão foi finalmente resolvida por Augustin Louis Cauchy, (1789-1857), matemático francês. Cauchy reformulou o conceito de limite de uma série infinita, como sendo um valor tal, que os números da seqüência da série diferem cada vez menos, entre si, à medida que se avança nos termos da seqüência. Deste princípio de convergência resulta que as séries convergentes formam seqüências nulas, isto é, seqüências que convergem para O. Esta reformulação retira qualquer referência ao infinito e trata o limite como sendo uma questão de divisibilidade de um intervalo, onde a unidade de divisão torna-se cada vez menor, convergindo para O ao atingir o seu ponto extremo.

Suponhamos uma seqüência representada nos seus termos pela notação genérica {cn}. Utilizando esta seqüência, podemos obter uma nova seqüência {sn}, fazendo corresponder um-a-um os temos das duas seqüências. Assim, teremos so = co s1 = c0 + c1 s2 = c0 + c1 + c2 tendo como termo genérico sn = co + c1 + c2 + ... + cn onde n = 0, 1, 2, ... . Pois bem, à primeira seqüência corresponde, portanto, uma outra seqüência {sn}, mas agora com uma configuração diferente, que a classifica como uma série infinita. Esta maneira indireta de apresentar uma série infinita, parece uma complicação desnecessária, mas na verdade nenhum matemático que se preze a dispensaria. De fato, a condição prévia para que ocorra uma série infinita, é que exista uma seqüência que lhe forneça a regra básica da sua formação. Quer dizer, a série infinita resulta de uma seqüência e é justamente isso que a definição indireta proporciona.

A característica fundamental do pensamento matemático, é a de obedecer a uma lógica própria. Essa obediência rigorosa a uma estrutura de proposições, é que confere a legitimidade ao raciocínio matemático. A lógica tradicional, ainda hoje utilizada, vem da tradição aristotélica e a figura mais conhecida é o silogismo. Composto por três proposições, o silogismo é um raciocínio dedutivo, onde duas premissas, a maior e a menor, têm entre si uma relação dedutiva, da qual pode-se obter uma terceira proposição, a conclusão. Voltemos ao modo indireto de definir uma série infinita. Muito embora não se demonstre, a definição do modo indireto de uma série infinita, é sem dúvida, construida com a estrutura de um silogismo, o que prova o quanto a lógica é fundamental para o raciocínio matemático. A lógica é o fundamento do conhecimento, o meio pelo qual interpretamos e descrevemos o mundo É realmente espantoso que há mais de 2.000 anos, os gregos da Antigüidade Clássica tivessem a idéia que o pensar as coisas do mundo, deveria obedecer a leis próprias. Claro que a geometria, com suas verdades absolutas, ajudou Platão a formular as suas teorias sobre a realidade do mundo. Para Platão, a essência das coisas era constituida por objetos abstratos, eternos, imutáveis e incorpóreos, somente acessíveis pelo intelecto. De fato, as propriedades das figuras geométricas somente apresentam valores universais absolutos, quando as figuras forem interpretadas, conceitualmente, como abstratas. Os lados iguais de um triângulo isósceles, por exemplo, somente serão exatamente iguais, se o triângulo for uma figura abstrata. Um outro modo dos gregos antigos considerarem a exatidão absoluta, foi com a representação em números inteiros das grandezas geométricas. Daí a grande perturbação dos pitagóricos, ao descobrirem que o comprimento da diagonal de um quadrado em relação ao seu lado, não podia ser expressado por uma fração.

Aristóteles foi mais longe no Organon, definindo a lógica formal, em que a teoria do conhecimento se baseia em conceitos universais, formulados por indução das leis da razão. A lógica manifesta-se sob vários aspectos, mas de imediato pode-se dizer que é a ciência da inferência. Inferir é um exercício de raciocínio, que consiste em deduzir uma conclusão de premissas ou argumentos. Portanto, inferir é supor, presumir a partir de hipóteses, e a lógica estuda as regras que condicionam a dedução, a fim de se avaliar se a inferência é ou não válida. Vejamos a definição de lógica dada por Alonzo Church, professor de matemática da Princeton University, U.S.A., na Enciclopédia Britânica de 1964 : “Lógica é o estudo sistemático da estrutura das proposições e das condições gerais de inferência válida, por um método em que nos abstraimos do conteúdo ou matéria, para se lidar somente com a sua forma lógica”. Portanto, pode-se afirmar que o silogismo tem uma estrutura de inferência, em que sendo válidas as premissas, podemos então inferir que a conclusão também é válida. A lógica manifesta-se continuamente na linguagen comum, se bem que sujeita, quase sempre, a distorsões e irregularidades, que fazem com que o raciocínio fique longe de ser lógico. Para evitar estas situações, os matemáticos criaram uma linguagem especial, apropriada ao rigor do raciocínio matemático, a chamada linguagem formal. A análise lógica formal consiste em formular sentenças, onde se atirbui ao sujeito um certo número de predicados específicos, isentos de ambigüidades ou contradições. O rigor absoluto aristotélico das duas posições mutuamente excludentes, a verdadeira e a falsa, foi finalmente superado por Gottlob Frege, (1848-1925), filósofo e matemático alemão, fundador da lógica matemática moderna. Frege introduziu quantificadores nas regras de inferência, possibilitando desenvolver o cálculo dos predicados, isto é, aferir em que bases axiomáticas podem ocorrer as inferências, tanto as válidas quanto as não válidas. Esta expansão dos conceitos de veracidade e de falsidade decorrente das teorias de Frege, propiciou inúmeros exercícios da lógica das proposições e seus predicados. Os exemplos foram obtidos por assunção que consiste em se admitir algo como válido, demonstrando as suas conseqüências, independentemente das proposições serem verdadeiras ou falsas. Conhecer como é possível deturpar o raciocínio correto, construindo as falácias ou sofismas, é tão importante quanto conheceer as regras da lógica. A lógica permeia todas as atividades do indivíduo, permitindo-lhe viver em sociedade com os demais. Sem a lógica subjacente na nossa linguagem, seria impossível a comunicação entre indivíduos. Mas enganar utilizando argumentos capciosos em estruturas lógicas, tão freqüente nos tempos atuais, deve ser constantemente combatido, ensinando as pessoas a raciocinar corretamente.

Para Aristóteles as “realidades” do mundo constituiam-se em sistemas, onde um certo número de “idéias” básicas, os axiomas, eram universais e evidentes em si mesmo. Quer dizer, formavam um conjunto de “verdades” indemonstráveis, das quais se deduziam todas as proposições da teoria. Na matemática moderna, sobretudo após o advento dos computadores, o método axiomático teve uma grande expansão, tornando-se o modo hipotético-dedutivo mais utilizado. No entanto, os seus axiomas não significam mais a “verdade”. Por isso, para designar as regras básicas que regem os sistemas, os termos axiomas e postulados são usados indeferentemente, como se fossem sinónimos.

A geometria plana de Euclides, (c.330-c.275 a. C.), continua sendo o exemplo clássico do método axiomático. Apresentada por Euclides no seu tratado de 13 volumes, intitulado Elementos, a geometria euclidiana baseia-se em cinco axiomas, dos quais se deduzem 465 teoremas. Os axiomas são :

1º. Por quaisquer dois pontos do plano, é sempre possível passar uma e somente uma linha reta

2º. Uma linha reta pode ser prolongada indefinidamente a partir dos seus extremos

3º. Qualquer ponto do plano pode ser centro de um círculo, qualquer que seja o seu raio

4º. Todos os ângulos retos são iguais

5º. Por um ponto fora de uma linha reta, é sempre possível passar uma linha reta paralela à linha reta dada, isto é, as duas linhas retas nunca se cruzam por mais que se prolonguem

Vejamos agora alguns comentários sobre axiomas. Convém esclarecer, desde já, que o método axiomático de Euclides, lida basicamente com linhas retas e círculos, e que as únicas construções com esses elementos geométricos, consideradas válidas pelos gregos, eram as obtidas com régua (sem escala) e compasso. A razão dessa exigência, é que ela correspondia exatamente à idéia que os gregos tinham da essência da geometria. A questão da régua sem escala, era porque a unidade quantificadora de um segmento de linha reta, podia ter qualquer extensão, desde que ela dividisse esse segmento em um certo número de partes iguais. A extensão seria portanto representada por um número inteiro positivo, (os gregos não tinham noção de número negativo), que não interessava saber qual era exatamente o seu valor.

Voltemos aos axiomas de Euclides. Ao Nº 4 por exemplo : “Todos os ângulos retos são iguais”. Por quê essa preferência exclusiva pelo ângulo reto ? Porque o ângulo reto define uma propriedade universal do triângulo : a soma de seus ângulos internos é de dois ângulos retos, ou seja, 2x90°= 180°, e esta propriedade é suficiente para desenvolver todos os teoremas da geometria plana. Se o triângulo for eqüilátero, (todos os lados iguais entre si), qualquer ângulo interno é de 60° ; se for um triângulo retângulo isósceles, (dois lados iguais entre si), os dois ângulos iguais são de 45° cada um. Consideremos um caso bem mais complicado envolvendo o ângulo reto. Suponhamos uma linha reta horizontal traçada com a régua sem escala e que nessa linha reta marcamos, aleatoriamente, dois pontos. Com o compasso centrado num e depois no outro desses pontos, e com um raio mauior que a metade da distância entre eles, traçamos dois arcos de círculo que se cruzam de um lado e de outro da linha reta dada. Unindo por uma linha reta os dois pontos de cruzamento, obtemos uma outra linha reta, perpendicular à primeira e dividindo o seu segmento de reta em duas metades. Centrando o compasso no ponto de cruzamento das duas linhas retas perpendiculares e com um raio igual à metade do segmento de reta, traçamos, com o compasso, um círculo que passa pelos dois pontos dados e que marca na linha reta perpendicular, outros dois pontos a igual distância do ponto de cruzamento. Unindo esses quatro pontos por linhas retas, obtém-se um quadrado inscrito no círculo. Cada diagonal do quadrado, isoladamente, divide o quadrado em dois triângulos retângulos, cujos ângulos retos são os opostos à diagonal considerada. Suponhamos que o vértice de ângulo reto gire na circunferência, passando para uma nova posição no quadrante, mantendo-se unido por retas com os pontos da circunferência, extremos da diagonal considerada, por exemplo a horizontal. O que acontece com o ângulo reto do vértice, deslocado para a nova posição ? Mantém-se ângulo reto ou passa a ter um outro valor de abertura ? Para se obter a resposta temos de recorrer a uma propriedade universal do triângulo : “a ângulos internos iguais, lados opostos iguais”, que se aplica ao nosso caso, visto que a hipotenusa do triângulo retângulo está dividida em duas partes iguais. Claro que o segmento de reta que une o vértice ao centro do círculo, poderia continuar sendo a bissetriz do ângulo do vértice, abrindo ou fechando a sua abertura, igualmente, de ambos os lados da bissetriz. No entanto isso não pode ser feito, pois a hipotenusa não se altera, continuando a ser sempre o mesmo diâmetro do círculo. Logo, o ângulo do vértice é sempre um ângulo reto, isto é, de 90°, qualquer que seja a posição do vértice na circunferência do círculo. A circunferência é, portanto, o lugar geométrico dos pontos do plano que se situam a igual distância de um outro ponto chamado centro.

Todas estas questões fazem parte da geometria plana elementar, assim chamada por ter sido apresentada por Euclides nos Elementos. O que é mais interessante, acima de tudo, é constatar o rigor da lógica euclidiana, nos raciocínios de dedução.

E fico por aqui. Até à proxima LIÇÃO.

4 comentários:

MADRID disse...

Gostei dos teus artigos,são muito esclarecedores e intuitivos.Como não sei o teu nome vou te chamar de Math mesmo,espero que não se encomode.
Vi que teu blog é bastante novo,mas tem material de bastante qualidade,e gostaria de convidá-lo a colaborar com seus textos para uma revista eletrônica a qual sou editor da seção de matemática.
Se for do seu interesse favor entrar em contato comigo pelo e-mail,bog,ou no grupo do google.

MADRID disse...

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Jean disse...

Gostei bastante do teu Blog. :)